segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

O ORÁCULO

Como posso esquecer umidade da sua boca, se os seus lábios ainda habitam minhas lembranças, e obrigam minha mente falha a lembrar de um beijo? Beijos que inúmeras vezes foram dados sob a escuridão parda e abandonada, perdidos nas escarpas profundas de um parque sem visitação. Criados sob o peso das correntes que prenderam nossos braços, forjados sob a força bruta que garantiu a liberdade do pensamento, quando a máxima: Estar preso é estar livre, rondava cada novo sentimento. Os segundos se fizeram de horas benditas, derretidas sob a lareira da imaginação. Foram respeitadas por uma trilha sonora, criada no instante que percebemos que tudo possui um som. Os olhos quando batem, a mão quando clama, o coração quando sorri, o peso do corpo sobre a cama. Escrevemos as cenas para os atores e as músicas para os menestréis. Não foram audazes, e não souberam preencher o tempo vago que entregamos como presente de aniversário. Assistimos aos espetáculos sentados nas únicas cadeiras que preenchiam o salão. Preparamos cada ato, entendemos cada cena. No passar despercebido da anunciação, percebemos que já era tarde, e que as cortinas estavam prontas para abrir. As surpresas foram desvendadas sob a calma prece de uma beata, que ajoelhada subia as escadarias de sua procissão. Pagava uma promessa feita sob a confusão da brevidade que a rodeia, e sem saber o que dizer, apenas agradecia o sorriso, visitante sorrateiro, que por alguns dias veio lhe brindar com sua presença. O terço se desfez num quarto, ganhando ares de rosário santo, a cruz se jogou do altar, e fez água benta com as lágrimas que já foram pranto. O prédio com suas escadas não testemunha mais o descaso para com o tempo. Agora, apenas uma casa guarda em suas paredes todos os segredos do vento. Em cada assovio envolto num mistério, traz sensações que buscamos viver. Nos cômodos discretos do silêncio que se fez, habitamos a cadeia ardente e entregamos para uma camareira qualquer, a responsabilidade de deixar tudo arrumado outra vez. Ela não conhecia a casa, e desarrumou os móveis, confundindo nossas sensações, e não permitiu que organizássemos tudo a tempo. Já era chegada a hora de adormecer. Em quartos que não eram nossos, senti o peso do cansaço. Em braços que não eram grossos, fiz o apelo do meu enlace. Percebi então que você sorria. Percebi então que você dormia. Não busquei outras verdades, não busquei outras manhãs. Busquei com minha boca seu sabor de fruta, sua pele de avelã. Concentrei minhas palavras como armas para uma luta, usei minha fome para um só divã. Contei para mim tudo o que queria ouvir. A cada frase dita, uma história era vivida outra vez. Nas cadeias que as lembranças trouxeram, senti que o peso se desfez. Você me visitou em sonho, me falou bem baixinho que tinha passado para dizer oi. Percebi assim que poderia me encontrar com você sem ter hora marcada, buscar sua face outra vez no silêncio tardio da madrugada. Você fez com que sua pele, cabelos e olhos, me acompanhassem por todo o dia. Perseguiram minha razão, e forçaram meus instintos ao estado mais natural e cordial Segui seu pedido, e deixei para trás os nomes e os instantes completos. Abandonei minha rudeza, pedindo para que ela procurasse um oásis no deserto. Faço da confusão das minhas memórias perdidas, uma lição adocicada que escreve sua própria lida.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

90º

O quarto ficou escuro, depois que improvisei cortinas, e dei a elas um toque descuidado. Com o lençol pregado na parede fizemos telas de pintura e quadros animados, que mais pareciam filmes em alta rotação. Libertamos o instinto de mudança, o instinto de aventura. Mudamos os planos, para que eles coubessem dentro da loucura que nos propomos viver. Não sabia por quanto tempo duraria. Hoje sei que durou um tempo bom. Assim como uma obra barroca, perdida na cabeça de Caravagio, fizemos luz e sombra. Acendemos vela, quando nossas almas precisaram de um improviso e visitamos o quarto, quando nos despedimos da cena de juízo. O calor pulou o muro e atingiu em cheio o corpo desnudo, deixando assim, o resquício de um peito suado. A última lembrança ainda atormentava os cantos daquele lugar! Tentando elevar os pensamentos para outros recônditos do mundo, vi que a porta estava prestes a se fechar, revelando assim, segredos de um dia nublado. Guardo cada sensação que me presenteou com seus laços de caixa perfeita, enquanto ouço os primeiros pingos que a chuva resolveu mandar. A tempestade se jogou com força, se envolveu em trovões, e fez despencar seus raios, num tom aceso de paixão. O vermelho desinibido, lançado com ardor, foi a peça escolhida para completar a coleção de lembranças, que juntas acabaram compondo uma pequena história. Todas ficarão guardadas, apesar do pouco tempo que fiquei dentro da casa. Tempo louco de mãos soltas, perdidas e machucadas pela porta que se pôs no caminho. Tempo de olhos presos no corpo, que num passo calmo e decidido, abandonava a penumbra e se mostrava por inteiro, tal qual o pássaro adulto voltando para o ninho. Tempo de lembrar os segredos que tornaram a semana acesa, voltaram de uma viagem longa, e desfraldaram as páginas da imaginação. Menina que cresceu formada. Menina que visitei nas madrugadas, menina que se despede pela força que a razão lhe dá.
Nas mesas que ficaram pela sala, se estenderam os corpos cansados, que procuravam apenas um bar para matar a sede. O carro andava acelerado, impulsionado pelas sombras que lhe eram cúmplices, no momento mais tenso do dia. Assim se fez o jogo, assim se fez guarita, assim soou a melodia. O guardião dos corações cicatrizados dormiu por um instante, e deixou o risco rondar a vizinhança. Eu homem, me fiz menino. O semblante sério e ácido se desfez, e me peguei sorrindo. Na boca calada das situações que vivi, percebo que depositei segredos, e sepultei desejos que foram mortos na fonte viva que se fez aqui. O último dia foi racional, um espetáculo de cores, num jardim para onde as almas levaram as flores. Depositaram seus relicários, e deixaram que seus tesouros fossem uma surpresa a mais. As surpresas ficaram guardadas em caixas que empilhamos e organizamos pelo nome. Roupas amassadas, histórias mal contadas e muita vontade de rir. E o relógio mostrava o tempo avançado! Não sei onde coloquei meus livros, não sei onde coloquei meu trago, não sei onde abandonei o cuidado. Agora procuro uma cadeira na qual possa me sentar, e repetir para mim que tudo foi real. Relembrar, e entender que minha boca provou o doce do açúcar, após anos comendo sal.


quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

RECOMEÇO

Uma nova partida se deu. O relógio desmanchado do tempo tocou, despertando-os do sono do descanso. Sono que começou como um bom cochilo, mas que já estava sendo invadido por sonhos desconexos, e tornando-se um pesadelo material. Havia sim a necessidade de começar outra vez. Havia a necessidade da se despedir do maquinista, que tocava incessantemente o sino dando o sinal da partida. Partir em direção ao desconhecido, numa viagem completamente nova, embalados pelo som do inesperado, e alimentados pela certeza de um recomeçar. Expectativas construídas, tendo como inspiração as experiências outrora vividas. Começar novamente, a ter na estrada uma companheira inseparável, uma amiga que lhes presenteia, lhes auxilia, mas que sorrateiramente os engana. Foi o destino que escolheram, foi o mundo que criaram. Com os poderes de uma “divina” inspiração, se fizeram construtores das próprias paredes, das próprias prisões. A fiança servia para prender, ao invés de libertar. As grades poderiam ser abertas a qualquer instante, assim que o desejo mandar. Os prisioneiros, contudo, esperam permanecer em suas celas, e contam uns aos outros, as conquistas santas e puras, já que eles, nenhum crime cometeram. Em cada novo início, a vibração do último dia ainda reverbera pelos espaços cerebrais. As vozes, que agora em silêncio, ocupam um conjunto de recordações, ainda são ouvidas, como se pudessem ter permanecido junto à matéria. Cada dia recebido num despertar, traz um caminho completamente livre que espera pelos seus bandeirantes. Eles não levam acabuzes, não levam mosquetes, levam cravado no peito a esperança de compartilhar o que conquistaram, de dividir aquilo que lhes é precioso, de acender um pouco mais de lampiões. Não querem encontrar tesouros, ou aprisionar indígenas. Querem dividir o ouro, e compartilhar as letras que em seus corações formaram imperativos com ordem de ajuda. Levam a lembrança de suas casas, levam a saudade de quem ficou para trás, aguardando o seu retorno, levam a imagem do tchau, implorando para que não seja o último. Partem para um mundo desconhecido, partem para um destino incerto. O nervosismo de menino, ainda visita seus corpos em cada novo começo. Do passado, boas histórias para contar, do presente, ah o presente, é muito atribulado para que possam prestar atenção no que está acontecendo, ele só será constatado quando já estiver num outro tempo, talvez no tempo das lembranças. Em correntezas muitas vezes fortes, os barqueiros remam para subir o rio. Não podem desistir, não podem cansar, há uma vila para abastecer, há uma cidade para chegar Não importa que horas o rio os chame, não importa a que horas eles tenham que viajar, deverão equipar seu barco, e subir até a fonte das águas vivas, e depois voltar correndo, rumando para o mar. Água doce e água salgada, soro de forte comoção, essa alegria é quase que sagrada, a expectativa faz verter suor das mãos. Não pedem por amigos, não pedem por admiradores, pedem apenas atenção, silêncio e observação. Pedem um pouco de comida, para que possam compartilhar na mesma mesa da ceia, e ausentarem-se da crucificação. E o sangue pinga lentamente da cruz que se ergueu. As gotas lavam a terra e fazem brotar novos momentos, que aliados a outros tantos, constroem suas histórias, um presente que se lhes deu.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O VAZIO

Sem nada para dizer, me resta a plenitude do nada. A ausência da matéria sã me intimida, deixando o som dos ébrios reverberar pelos becos escuros dos botecos desertos. Escuto a garrafa rolar rua abaixo e se deter no corpo de algum bêbado caído na esbórnia, lembrando do verdadeiro paraíso das meretrizes apocalípticas e da sacanagem, onde estava há pouco tempo. Sua família paira no esquecimento das virtudes mortas e concentra-se na dor das ocasiões perdidas. Fizeram-se enclausurados para não sofrer tanto, despediram-se das lembranças, para não lembrar tanto. Quem jaz no esquecimento tem menos oportunidade de ferir.
Afasta-se no alto da madrugada sombria a expectativa de ver mais um dia. Cada caminhar do ponteiro, é um passo dado na certeza de que aquela noite será eterna. A ordem natural se inverteu, quando o consumo desenfreado de suas entranhas permitiu que ele devorasse seus próprios olhos sem perceber. Ele queria devorar sua visão, sua experiência física de ver. Já que nas gélidas interpretações, sua razão se fazia obscura. Nada era justo, nada era errado, nada era humano, nada era interpretado. O certo, tomou a direção contrária durante as encenações da peça que o teatro se recusou apresentar. Os atores pediram demissão, e entenderam que interpretar a própria vida já era uma verdadeira obra de arte. Os produtores e diretores cansaram de tentar conduzir a vida alheia, e se preocuparam em criar monólogos que explicassem suas condições. As feras estavam todas soltas, como leões que devoraram seu domador. As palmas, esse simples encontro de mãos, apenas serviam para constatar que essas mesmas mãos ainda não estavam decepadas. O som, não pôde se propagar pelo vácuo que os pensamentos deixaram na solicitude de suas necessidades. Tudo ficou em silêncio, tudo ficou mudo. The Sound of Silence! Somente os gestos representavam inadvertidamente uma ínfima parte do que se quis dizer. Apenas gestos. Gestos de mãos vazias. Gestos de sentido plantado em terra seca. A sensação é nítida, e a certeza, como poucas vezes, é clara: Ninguém pode ouvir. Ninguém pode mesmo. Ninguém ouve, ninguém vê. Ninguém se importa. Não interessa quanto o sofrimento aperta o embriagado homem, não interessa como a garrafa chega até ele, como a garrafa voa até nós. A bebida já foi tomada e digerida. Absorvida por cada célula buscando vida e lutando por sua sobrevivência. O bico já foi beijado, o álcool já percorre as veias, o entorpecente está presente. Não importa se veio da papoula, da cana, da bis, da coca, da cola, ou de alguma doutrina falsa impregnada em sua cabeça. Ela veio. Ela tomou conta do seu ser, e agora moribundo pelas avenidas da vida, o homem humano está cambaleando diante das próprias indagações perceptivas que tantas angústias trazem à sua noção de eu.