sábado, 27 de fevereiro de 2010

MINHAS HISTÓRIAS


Teatro sombrio com cortinas rasgadas. Cartazes abandonados em docas que há muito tempo não sabem o que é um navio. Estivadores bêbados e largados nas valetas que antes foram seus esconderijos. Morcegos que voam sob a lua, e assistem aos sonhadores que torcem pela visita de um vampiro. O tempo da colheita já passou, e a árvore que trazia os sorrisos largados hoje tem pendurada cabeças que não sabem o que é alegria. Muitas cabeças pendem dos galhos que queimaram na fogueira do último ato. Estão amarradas pelos cabelos e balançam no som exato das notas que o vento traz na forma de assovios. Ao lado do bosque de crânios, um lago de lágrimas que sem sentimentalismo algum, ganhou sua dimensão com o choro frio das viúvas dos astros assassinos. Uma planície coberta por corpos decepados encerra a cena tétrica da peça concluída. As luzes refletiram bocas sem dente e o olhos que brilhavam, assim o faziam pelo fogo que ardia dentro das suas retinas vazias. Foram vazados pelas cenas que insistiam em acontecer. Hoje guardam apenas o imagem negativa do último acontecimento. Uma fotografia que não virou retrato. O sorriso disse adeus e levou consigo o que havia de melhor. Escolheu a dedo suas opções e priorizou o lamento solto das tardes eternas. As bocas geladas assopraram as últimas tentativas de aquecer uma novidade que não teve palmas e nem festejo, apenas lamentos, lamúriase velórios de lampejo. Num campo onde o sol não quis brilhar, foram feitas as escolhas erradas que trouxeram para a igreja um demônio que precisava ser exorcizado. Os espíritos saíram, os espíritos vibraram. Perguntaram quais os corpos deveriam ser recolhidos, e a tentação lhes disse que nenhum. Todos deveriam apodrecer, todos deveriam perecer. A condenação dos seus dias veio pelo fato deles não saberem como recordar. De eles não darem atenção aqueles que lhe pediam. Um minuto de inteira atenção, era tudo que se cobrava. Mas a alma estava presa nas próprias inquietações absurdas, e tratou como opção o coração que lhe tratava como prioridade. Ao juiz coube a sentença. O fim do primeiro ato se deu com a morte do culpado. Um único tiro que lhe perfurou a fronte e fez com que sua cabeça estourasse no quarto fechado. Em câmera lenta era possível observar as lascas dos ossos que saiam da sua cabeça, a parede sendo manchada com a despedida da vida, e o chão inundado pelo que antes corria em veias e artérias. Estava guardada na eternidade a esperança de voltar a ser feliz. Morrendo, sabia que não poderia ter paz, mas sabia também que jamais sentiria as lágrimas rolarem pela sua face outra vez. O diretor divulgou a peça, os atores ficaram estupefatos, a platéia não entendeu o desfecho, e a donzela das antigas histórias sentou-se no chão e sorriu. Gargalhando escrevia o próximo ato. Gargalhando demonstrava as aclamações por uma nova vida. Podia não ser a risada mais sincera, mas era a certeza de que jamais sofreria novamente.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

MEU INFERNO VIZINHO




Sagrei-me cavaleiro nos portões infernais. Troquei meus pés por cascos dispostos a cavalgar as planícies da maldição. Maldito, Maldito, Maldito. Tornei-me arauto das batalhas diabólicas, e nas fendas amaldiçoadas ergui meu estandarte da perdição. Ergui o escudo feito com os ossos daqueles que ceifei, e enquanto usava minha proteção, ouvia o clamor daqueles que, sem piedade, fiz questão de abandonar. Famintos doutores do banquete de lixo e das fezes ditas relíquias.


Conversei com almas desossadas, e coloquei os mortos suculentos sobre a mesa para que finalmente eu pudesse saborear uma distinta refeição. Um pouco de água sobre o cadáver, a ferramenta certa, o corte preciso, e eis um belo jantar. Pena que a comida estava um pouco fria!Tudo bem, esses mesmos corpos quando chegarem ao reino subterrâneo das trevas estarão aquecidos pelo fogo que consome milhões. Trevas apenas no nome do distante domínio, uma vez que a luz e o calor estão presentes de forma constante. Tudo queima sob o olhar atento do demônio em excitação.


As labaredas da pira eterna do inferno souberam gravar na minha pele as marcas que o metal deixou no meu coração. Sentei num canto qualquer, e com a faca usada para tirar a vida, gravei o nome das penitências que ainda terei de cumprir. Encostei suavemente sua ponta em minha carne, até cravar o aço nos meus ossos, e a suavidade dar espaço a agressão que assumiu agora o controle. O sangue verteu, escorreu pelo meu braço e brindou o chão com o seu aroma inconfundível e com sua vontade de voltar para o universo tentando outra vez experimentar a vida.


Rumei para o reino dos mortos degradados e fui recepcionado por demônios fedendo enxofre. O chicote escreveu com o sangue das minhas costas o caminho para o cálice sagrado. E de líquido vermelho saído do corpo em feridas se fez o jantar. Bebi minha própria vida, bebi meu próprio eu. Vomitei a vontade partida, vomitei demônios em forma de deus.


A perdição estava impressa em cada lareira acesa para esquentar uma caldeira. A lenha estourava, a madeira era consumida pelo calor. Dentro da mesma caldeira, corpos ardiam entoando as músicas satânicas que trouxeram a condenação. O Diabo não cantava mais. Ele era o motivo da canção. Feliz, via os corpos derretendo. A pele pendendo dos ossos e pingando no chão. Todos deformados, apresentavam faces em decomposição. O cheiro podre infestava o lugar.


Olhos vermelhos cravejados de diamantes davam o brilho que a festa pedia para ter. Dentro de cada corpo borbulhando, uma alma sonora tentava resgatar um pouco da bondade abandonada nos anos que passaram. Não conseguia, e a cada tentativa frustrada, voltava ávida por um crânio estourado para compensar o esforço vão.


Nada se diz ali. O que se houve são prantos, palavrões, gritos, dor. A própria dor encerra sua jornada após um tempo de trabalho e abandona o corpo que se vê rejeitado até por essa estranha forma de sentir. É o mais baixo estado de um corpo que flutua na própria sorte.


O inferno se abriu pra mim, o inferno me engoliu. Não consegui respirar o último instante das verdades ditas e caí nas chamas do engano, que ardem as mentiras queimadas, e reciclam cada gesto tido por enganoso. Fogo das aberrações condenadas. Velas que derretem sua cera e marcam meu corpo com aquela calda quente, tatuando um caminho sem fim e sem retorno.