segunda-feira, 30 de março de 2009

SEU INGRESSO POR FAVOR

Choquei o mundo, quando contei para esses pedófilos intelectuais, que eu ainda me considerava uma criança. O estupro das idéias se dá diariamente, com as mentiras, ditas na forma de ilusão, apenas para perverter uma juventude, e lhes privar o direito da razão. Pude fazer um termômetro macabro, um verdadeiro farol de candelabros, com os graus da minha loucura! Entendi que era a noite densa demais, e o dia trazia em seus tentáculos, manchas ignorantes, verdades escuras. As chamas acesas mostraram, que o lado cego trazia seu legado de formosura. Loucura que apenas paga o preço da exatidão, quando todas as palavras postas, não dizem nada além do que a verdadeira visão seria capaz de constatar.
Não contei carneiros, não pulei a fogueira de São João, não aguardei o carnaval de fevereiro, nem atirei a flecha em São Sebastião. Roubei o cavalo de São Jorge, e o Dragão passou a persegui-lo. Sabia que era apenas uma questão de tempo, para ver os dois juntos. São unha e carne, e desde que alguém os pintou são inseparáveis, a verdadeira manifestação do EU SOU. São fogo, são energia. Um demonstra suas convicções pela espada, o outro pelo gosto amargo do enxofre, que queima suas papilas gustativas, dando impressão de que tudo perdeu essencialmente o sabor. Corri em galopes fortes e errantes. Peguei a santa montaria, e lhe dei um destino empolgante. Mostrei que ele poderia galopar além dos próprios limites. Provei que o mundo era infinito, e que haviam tantas paisagens para conhecer, que ele, por amor ao seu amo, por tanto tempo desprezara. Havia formas certas para pagar o amor, trazendo assim o esquecimento para quem verdadeiramente o desprezara. Aquele cavalo parecia uma fera solta, um Dom Quixote sem o Rocinante. Experimentou sons que não eram preces e nem orações. Viu bundas que não eram armaduras do velho Jorge. Posso dizer que ele ficou extasiado, ao perceber que o mundo não se fazia apenas de dragões, viagem para a Lua, e quadros nas casas de velhas beatas.
Ao voltar de uma bebedeira, quando o pé-de-pano já estava um pé d´água, encontramos nosso santo, conversando com o cospe fogo. Juntos saudavam as sagradas vacas indianas. Algumas, se entregavam em sacrifício, e permitiam que suas costelas fossem saboreadas, e todos se apoderavam de suas divindade. Estávamos os quatro, São Jorge, que pedia para ser chamado apenas de Jorge, o Dragão, o Cavalo e eu. Alguém teria de partir. Novos destinos chamavam por esse dissecador analítico de falsas doutrinas. Novos santos queriam colocar a roupa de baile, e abandonar o uniforme de presidiário em forma de batina. Quantos gostariam de verdadeiramente deixar fluir seu espírito quente, deixar saltar suas veias grossas, e fazer todo o sangue correr, num espetáculo de pulsação intensa. Antes que outros animais chegassem, e eu passasse a ser chamado de Noé, e tivesse que trabalhar, rumei para meu infinito destino, na busca intermitente por algo que pudesse chamar de lar.
Pulei o muro, buscando encontrar um colchão de espumas, penas arrumadas, e confortavelmente postas, e não me dei conta de que pulava num abismo iluminado pelas luzes da usura. Servi de conselheiro fracassado e minhas dicas não foram úteis. Não consegui cuidar nem do menor dos pacientes. Perdi os cordões umbilicais em alguma mesa de taverna mal humorada, quando eu apresentava duas duplas, e um sortudo descia uma quadra. Perdi o emprego de babá de luxo. Na verdade pedi a conta, quando percebi que estava prestes a contar histórias mal acabadas, talvez até mal vividas. Todas fundamentadas numa perfídia ilusão, hostil e astuta pelas próprias mãos. Onde foi que depositei todo o intuito perdido de um dia voltar a ser normal? Quando é que fui, em minha vida, alguém mais simples, alguém mais natural? Nunca abandonei meu lado infantil. Foi o mundo que se distanciou do meu universo juvenil. Levantou-se como adulto que cresceu rápido demais. Não sabe onde por as mãos, não sabe onde pôs os pés. Procura agora um refém que acredite em seu seqüestro de tradições, e se limite a aceitar tudo em sua volta, seus erros e proposições, quadros quebrados de igrejas construídas sobre cabarés.

domingo, 29 de março de 2009

TUDO SE DARÁ OUTRA VEZ

E quando isso tudo silenciar? Os sinos, um dia darão seu último badalo na torre central. Despedir-se-á o gótico, dará adeus o românico, será o barroco apenas um borrão na arquitetura celestial. Quando meus ouvidos não puderem mais captar as essências simples que tornam a vida verdadeiramente algo para se viver? Precisarei de meios desconhecidos, para, experiente e sincero, dizer apenas sobre o que quero conhecer. Quando eu não ouvir mais o barulho da louça, o barulho da porta, o barulho dos seus passos chegando? Quando eu não souber mais se é minha vida saindo ou minha morte entrando? Então verei minhas forças dizendo adeus.
Peço silêncio diante das coisas simples, mas sei que é chegada a hora em que a própria vida se desenrolará na quietude absoluta. Não falo do silêncio sensível, não falo apenas da audição. Falo dos barulhos que nos rodeiam. A sensibilidade poética, a consciência certa, e a própria percepção. Falo das coisas que mesmo sem ouvirmos estão nos presenteando com sua existência.
Com o tempo, perdemos pessoas, e elas passam a fazer silêncio para nós. A voz fica em nosso cérebro, em nossa razão, em nossa alma, seja lá o nome que isso tem. Primeiramente forte e saudosa. Então surgem os dias, os meses, os anos, enfim, essas sensações falsas que chamamos de tempo, calam as últimas lembranças, até que resta apenas um fio lânguido e tênue, uma imagem fosca e confusa, um cheiro que se vai, levado pelas forças que não nos dizem respeito.
É chegado o dia, e todos cairemos também nesse tom sepulcral de coro falido. Cairemos nesse abismo temporal de sonhos esquecidos. Seremos apenas uma imagem que perdeu sua moldura, um retrato guardado onde as câmeras jamais nos observarão outra vez. O vácuo será a barreira do infinito, e devo admitir que as luzes e o colorido ficarão para aqueles que souberem aproveitar. Não crio expectativas em torno do porvir, não lanço esperanças na tempestade que vem do além, e nem acredito que a noite poderá ver o despertar outra vez. Por isso gravo com a força da impressão que tenho, tudo aquilo que posso levar. Guardo meus tesouros ricos. Não são nobres, e variam de uma simples folha colorida, até um imenso rasante pelo mar. Sei que será esse meu combustível, quando o barqueiro trouxer o anjo triste para perto de mim. Sei que o lago se fará pelas virtudes abandonadas em tempo bom. Estou certo de que a viagem começa, quando essa terminar. Estou viajando solitário. Será uma partida solitária.
Posso ter tudo e todos perto de mim, mas quando o juiz chamar meu nome, e minha alma se fizer presente, estarei sozinho, mesmo que meu caminho, esteja iluminado e reluzente. A luz se levantará como bem supremo, só então saberei se as cores tem gosto, se as notas musicais são visíveis, se a poesia existe, se a alma expressa, se o coração lamenta. Responderei as minhas perguntas, ou farei novas indagações, sobre o princípio áureo do universo, e sobre o motivo reverso de minhas ações. Quem sabe troque de lugar com Perséfone e seja capturado pelo Hades. Terei então de ouvir Deméter negociar minha visita anual. Na minha estada, talvez até encontre Virgílio e lhe de novas idéias, ele então transmitirá a Dante, que poderá prosseguir em seus relatos divinos e cômicos.
Quantos reis conhecerei? Quantos conselheiros adotarei? Queria conhecer o Rei Lagardo, o King Lizard, o Grande Xamã. Será que terei de ir para África? Talvez ele já me aguarda, como o único amigo, para dizer que esse é o fim. Príncipes e princesas do mundo, deixem seus tronos para os serviçais, saiam do seu castelo imundo. Não é julgando o tempo pelos temporais, que se farão reis os vagabundos. Peguem os seus caixotes guardados, lustrem suas coroas. Só assim saberão que seu futuro desregrado, poderia ter se concentrado apenas, em lembranças de tardes boas.
Sentar em frente o rio, e deixar a correnteza cobrir as pedras. Ver a cachoeira. Fechar os olhos e ouvir a cachoeira. Tapar os ouvidos e sentir o cheiro da água. Trancar o nariz e absorver a energia da vida que vem das úmidas correntes. Impedir a pele de sentir, e conceder à boca o direito de provar. Fechar a boca, e aí então descobrir o ritual que nos permitirá conhecer verdadeiramente o que a simples cachoeira sempre quis nos mostrar.
Adicionar imagem

EU VEJO O HORIZONTE


Gritei com a voz que me restou, quando último sinal da garganta, silenciava diante de suas convicções. Procurei a pista que o detetive usou, quando seu caderno foi arrancado, e o homem jogado as suas limitações. A força de nossas crenças está ligada à consistência de nossas dúvidas. Duvidar também é conhecer. Especular é uma forma de pesquisar, e quando a idéia submetida se rende à esperança cultivada, vemos florescer uma rosa, num terreno inóspito e hostil. É o espírito que desce em nossos corpos. Deixa o céu monótono da vida eterna, e habita o inferno incerto das causas terrenas. Busca alma que já foram libertas, e acorrenta suas mãos essas pequenas. Abandona todos os santos, e queima seus corpos para apagar as lembranças de uma vida pura. Abandonei o pecado, quando deixei de acreditar que ele existia, e que trazia a morte dura. Caminhei para a santidade de uma maneira dionisíaca. Busquei um espírito divino, mudando o conceito de divindade. Sou a própria eternidade. Sou a própria razão. Sou a inteira caridade, sou a nítida cópia do perdão. Nunca soube de mim antes de existir, e não saberei mais depois que partir. A eternidade dura exatamente o tempo de uma vida, assim como o livro é desconhecido até sua primeira lida. Não quero desperdiçar todo o tempo do mundo, que se resumirá em anos mal contados, esquecidos por uma gagueira experimental, numa contínua luta contra meu lado, correndo louco pela pista da passagem final. É a razão, que assume sua forma religiosa e sobe em busca de venenos, que possam curar as feridas abertas pelas descobertas que a vida fez nos deixando assim, terrenos. É o paradoxo da dominação. Só passei a temer o inferno quando alguém falou que ele existia. Passei a encarar o inferno, quando transferi para lá, tudo o que eu mais queria. Não é o fogo que arde na alma, e nem a água que mata nossa sede, mas a vontade, ela determina quais os peixes ficarão em nossa rede. Não entendo o normal, por isso posso ser alguém, pensando e agindo diferente, sabendo porém, que uma infinidade de pessoas iguais, age diferente. Posso agir de certa maneira, sem ser ou pensar assim. Posso pensar algo indeterminado, e guardar como bem supremo, esse tesouro que não espero, seja roubado. Nunca darei a ninguém o direito de conhecer meus pensamentos. Eles são o nu do meu corpo, que sempre está coberto pelas roupas da decência, mas continua sendo nu. Ninguém nunca poderá ser o vestiário dessa pobre morada. Guardo meus instrumentos com a mesma delicadeza de uma obra inconclusa. Não completou seus traços, não fechou suas tintas em simetria, mas deixou gravado em tela um pouco do seu autor e de sua maestria. Pequena sutileza de versos inacabados. Foi você que encontrei de olhos abertos, quando os meus estavam fechados. Busco você nas mentiras postas em minha mente, e sei que construí uma selva de animas vivos, com suas consciências dormentes. Esse exército de misteriosos jogadores se lança numa trincheira final. Carregam suas culpas, e jogam-nas num abismo, e percebem que a própria terra engole suas ânsias e sua punição. Não há motivo para a culpa. Não há razões para o ódio. Quando o peso da culpa se curva diante da vontade, percebemos que a força está sempre disposta a mudar de lado. É a lua e seu eclipse, é o sol querendo se esconder. Justamente o sol, que em toda sua vida sempre brilhou, e nunca sentiu o gosto de uma noite em seu quintal. Onde as crianças brincam? Onde os jovens beijam? Onde os velhos dormem? Em mananciais perdidos, fechados na própria ilusão.

domingo, 22 de março de 2009

ALGUÉM DESLIGA O MUNDO PRA MIM?

Estou sentada na esquina, de algum lugar que passei. Sei que não sou menina, sei que faço a minha lei. Pessoas aparecem todos os dias, vejo essas pessoas passarem. Reflito sobre minhas indagações, não peço para elas que parem. Num lugar que já conheço, vejo pessoas que não são estranhas. Num ambiente de lembranças esqueço, tudo que passou, e as minhas façanhas. Esqueço das noites, em que fiz companhia para as mesas, jogando palavras para o espaço, nas bolsas que eu mesmo comprei. Queria apenas me calar diante das notórias histórias que ouvi.
Você chegou devagar. Como foi chato o momento. Seu sorriso é feio, suas histórias não tem graça, suas mentiras refletem apenas seu sofrimento, e eu não me importo com ele. Não posso me importar, ache outra para pedir, ache outro para confessar. Tive que esperar você ir embora, fui condenada sem julgamento. Aguardei sua partida, e olha que demorou uma música inteira. Na verdade nem sei se já foi decidida. Fico pensando com é cara a simpatia! Custa ver que meu silêncio vale mais? Será difícil entender que meu sorriso não está associado às minhas intenções amigáveis, que, aliás, nem existem?
Só porque decidi começar um ano legal, mais normal talvez! Como posso gostar da normalidade, com ela se apresentado dessa forma louca e desvairada? Ainda se fosse colorida, mas até as cores parecem brigar. Ostentam um momento que não existiu, criam circunstâncias das quais nunca participei. Presumem que meu olhar se perdeu ao seu encontro, e os tons perdidos em seu próprio mundo, fingem que me perguntaram: O que foi? Deixa essa vida de encenações, que se perderam num emaranhado sem ações. Deixa de lado essa pobreza de espírito, vista outra cor, abandone o amarelo. Quero apenas olhar para o lado e sentir o controle real do momento, sem ter de me esconder em intervalos curtos, fugindo da conversa e de assuntos absurdos. Fujo até da distância que me persegue. Deseja que eu afirme suas verdades, e as minhas verdades negue. Tudo gira em torno de fenômenos gloriosos. Eles se resumem nas coisas que fazemos, e nas coisas que deveriam ser feitas. Quem eu devo abraçar, que eu devo buscar, amigos que eu posso escolher, conversar que ganham votos e são eleitas. Para qual cargo eu não sei, apenas finjo estar satisfeita bebendo de uma água que já cansei.
Tento buscar socorro, num olhar despretensioso, busco chamar alguém, que possa encarar comigo essa tarefa de defender a simpatia. Nem sempre é fácil encontrar o preterido ajuste, quando as cordas estouram no meio da sinfonia. Com amizades loucas minha vida se fez. Tentei ajudar os outros, esperando minha vez. A cada passo em frente, perdia meu lugar na fila. Não entendo as coisas como são! Quero apenas viver a minha vida, e mostrar que tenho o controle da situação. Não sou uma criança perdida a caminho do inferno, por isso não queira ser meu abrigo, quando minha sombra não está no inverno. Dizem o que preciso fazer, dizem como preciso andar. Querem controlar meu sorriso, e até meu jeito de beijar. Porém isso tudo passa, na forma de um filme de curta duração. Fico vendo a vida como um trem que parte, e eu me pergunto, como fiquei na estação. Não se aproxime se não for para trazer liberdade. Tenho certeza das coisas que eu penso, e decido a minha idade. Ela muda com a força do vento, e até parece diferente em outras cidades. Causa espanto, gera segredos sem fim. Esse emaranhado de lembranças vivas, quero guardá-las só para mim.
Olho outra vez para o lado, numa tela de eternas ligações. Achei que tinha ganhado um pouco de sol, e me perdi na tarde nublada. Não sabia se as respostas viriam no alto da tarde ou no silêncio oculto e distante de uma madrugada.


sábado, 14 de março de 2009

UM ABISMO NOITE ADENTRO I - Foi assim que conheci..

Entrei no carro estacionado ao lado da minha consciência, durante a hora mais vagabunda do dia. Pisei sobre as bandeiras que os povos me deram como resistência. Não quis comprar gatos, não quis cortar a grama, e nem ajudar a periferia. Resolvi seguir pela auto-estrada, procurando encontrar uma auto-ajuda, questionando se o hífen ainda acompanhava essas irmãs inseguras. Segui por quilômetros secretos, e calei-me diante de vozes mudas. Não sei se realmente queria ouvir o que era necessário ser dito, ou se já sabia, de antemão, aflito, o peso das histórias desnudas. Acredito que a resposta já havia sido descartada, desde o instante em que decidi escrever. Ficou entregue aos seus fundamentos temporais, não permitiu que o momento transformasse seu rosto, tenho a impressão de que a vi morrer. Antes mesmo de tentar imaginar qualquer coisa concreta, meu pé já estava pesando sobre o acelerador, e numa pista funda em linha reta, vi que os faróis das lanternas sem pilha, me deixavam seguir em frente, acompanhando sempre a faixa contínua, trazendo para mim o termômetro de um espectro que me saudava com calor. O ponteiro do velocímetro subia e completava seu curso de 180º. A cada novo número alcançado, eu concluía que dentro em breve poderia estar tudo acabado. Mesmo assim guardei minha culpa fechada, numa caixa de palavras vazias. Desisti de minha idade, quando não pude mais contar meus dias. Envelhecia cada vez mais, ao saber que estava morrendo desde o momento que nasci. Não me despediria dessa vida que me acena, mas acenaria para ela renovado, retornando da velhice acesa, trazendo comigo um corpo apagado. Queria correr e deixar tudo para trás. Nesses tempos bons, foi que percebi a perdição dos anos maus, e na consistência de minhas dúvidas, questionei a crença fugaz.
Andei por bares que eu não conhecia. Deixei a garrafa de refrigerante vazia, e levei o seu canudo. Por muito tempo ele foi o único dinheiro que tinha. Foi um tesouro guardado no bolso, que esperava a carteira que eu queria. Escorreguei pelo piso liso, e cai atordoado no açúcar dos canaviais livres, que o café trazia. Já peguei carona, já desisti de viajar, já corri o trilho, já pulei no mar. Fui marinheiro em maremotos gotejantes, e naveguei sobre o rio de lágrimas salgadas. Acenei para Ísis e lhe dei um doce, pedi que amasse um guerreiro e roubasse a sua arma. Já beijei, amei, sorri, e quando os canos pediam mais ouro para forjar, trouxe espadas prontas e me aventurei a lutar. Agradeci aos deuses por terem se suicidado para mim. Assim lutei mais feliz, livre do fardo que a lei criou. Abandonei a vida do pecado, quando o pecado para mim se calou. Sou santo, estou salvo, sou perfeito, não sou mais alvo. Libertei-me do pecado quando matei sua idéia dentro de mim. Aboli a lei púrpura e exultante vi seu fim. Lutei com pompa, lutei com os amigos. Procurei o socorro justamente quando já havia se fechado o abrigo.
Sozinho percebi, que apenas as perguntas novas podiam me calar. Sozinho entendi que não precisava de ninguém que não quisesse sonhar. Sonhos desvairados sem nenhuma conexão. Cumprimento perdido no vento, apertos que não encontraram mão. Presente contrariado que só vive na cabeça, deixe de lado essa pobreza antes que eu sorrateiramente enlouqueça. A mentira se fez verdade quando eu decidi acreditar, se fez real quando eu parei para olhar. Fiquei brincando com meus sonhos, mas percebi sem graça que estava acordado. Fingi para mim. E mudo por causa do tédio, me fiz calado. Vislumbrei o saldo dos erros que acumulei, e guardei o tom cinza dos corações nublados.

UM ABISMO NOITE ADENTRO II - Quero sentir o gosto de tudo que perdi

Enquanto minhas mãos seguravam o volante e meus ouvidos absorviam as cores de uma capa sem disco, dei graças pela tecnologia, e por termos abandonado o LP. Deixei a cabeça viajar tão rápido quanto o sangue que jorra das veias abertas, quando são postas numa piscina quente. Percebi que eu, um viajante errante, um guia perdido, me encontrava lambuzado e escondido nos preconceitos que sempre combati. Perseguido pelos inimigos imaginários que retornaram do Hades, e trocaram Perséfone pelo meu sossego. Não tiveram apenas um reino, não buscaram apenas um emprego. Quebravam-se assim os quadros da parede. O sorriso discreto da Gioconda misteriosa desfraldava uma gargalhada naquela cena ruidosa. Era pego de assalto, pela surpreendente encenação de opiniões que há pouco desprezei. Estava surpreendido pela realidade posta numa obra prima, que eu nunca desejei. Descobri que desse livro feito às pressas, eu não era o autor, e nas pinceladas temperadas pelo óleo de linhaça deixei impresso o sonho de um pintor. Não sei onde encontrei essa possibilidade suculenta para degustar. Não me recordo quando foi que me fiz cozinheiro e mestre do apetite, se fiz o almoço, ou apenas o jantar. Tento uma colaboração do meu cérebro e faço um esforço para reproduzir o momento exato do encontro. Se numa lata de lixo, ou numa maca de hospital, se na intenção de achar o bem, ou na minha solicitude com o mal. O certo, porém, é que senti pena, senti nojo, da comida que fiz. Queria vomitar meu espírito, minha razão, e meu juízo de valor. Usar uma bacia descartável, que pudesse ser aproveitado depois por um boticário, sob a garantia de eu comprar um frasco desse remédio contra a dor. Um remédio vindo das minhas entranhas, minha mais pura essência de idéias estranhas. Talvez comendo um pouco de mim mesmo, posto sobre a mesa que montei eu possa reciclar o que não entendo, e descobrir a minha lei. Como seria bom, penso às vezes, entregar as rédeas da minha vida, para um cocheiro qualquer. Não precisa ser inteligente nem amável, nem homem, nem deus. Um herói talvez. Ele abriria as portas da minha carruagem, que já foi guiada pelos lampiões acesos nas noites invernais, e montaria no corcel (condutor dos meus projetos), alado creio eu, para desbravar todas as encostas íngremes que cortam a planície das minhas objeções. Enterrar as veias dilaceradas, e acertar as cordas desafinadas. Poderíamos quem sabe, até incendiar as árvores da floresta petrificada, e eliminar o peso que sufocou a pureza de minhas intenções.

UM ABISMO NOITE ADENTRO III - Mais uma dose por favor

Enquanto dirigia, vi os mortos, que rastejavam pelo asfalto quente. Enquanto seus corpos derretiam, seu calor era equilibrado com o meio decadente. Suas almas subiam, saiam, corriam, voavam. Restava apenas uma lembrança do que antes havia sido um corpo vivo, uma prova do que guardavam. Senti o amor se perdendo, senti o amor se despedindo. Afrodite recolhe seus filhos, e nos deixa órfãos irracionais. A morte cumpre seu papel, quando exige que ergamos o braço para receber esse troféu. Vitória celebrada sob a pena do pudor, morte encantada que levou de mim a dor. A cada despedida de alguém, entendi que me despedia de um pedaço de mim. Em cada caixão suspenso num velório de lágrimas, vejo o elo que une os mundos descabidos dentro do entendimento da razão. Despeço-me daquele corpo, que do amor sempre fora abrigo, enquanto representado pelas batidas do coração. O amor está preso em cada corpo, em cada ser humano. Não existe no mundo aberto, e nem pode ser posto num só plano. Cada um de nós detém um pouco desse amor. Cada um de nós é um pouco de si mesmo, um pouco de outro alguém. Com a morte do corpo e o sumiço da fugitiva alma, mais uma porção do amor se perde. Penso como seria, se cada ser humano que professa o amor, morresse sem deixar um discípulo para regar a sua flor. Não teríamos herança de sentimento num futuro próximo, e o que nossos filhos saberiam sobre amar, estaria contado em livros, considerados epopéias míticas de verdades intuitivas temporais.
Como adentramos nesse campo sem flores, que torna o jardim suspenso, e destrona os seus valores? Em que momento passamos a acreditar nessa força inquietante? O que nos leva a abandonar a paz de espírito, e desejar ser alma conflitante? Não consigo entender as peças que formaram esse quebra-cabeça, e ainda procuro a caixa do meu jogo, para que a foto desejada pela imagem crie forma e apareça. Touro de cabeça raspada, mago de mágicas descobertas, parado na beira da estrada, vi que os pés gelados, precisavam de uma coberta. Foi nisso que acreditei, foi isso que me envolveu. Percebo errônea e tardiamente que aquilo que busquei, de fato nunca foi meu. Precisei acreditar, precisei beber da fonte. Mesmo que a água corra além das montanhas, eu ficarei atrás dos montes. Escondendo-me das almas infernais, foi que garanti meus votos sagrados, prometi livrar meu espírito das tempestades invernais, quando aqueci cada brecha do meu corpo com o amor abençoado. Tudo o que busco é um abrigo, tudo o que quero é uma sensação, de que o mundo está comigo, e fez um eclipse com a paixão.


UM ABISMO NOITE ADENTRO IV - O FIM



Encosto a cabeça na janela fechada, e tento equilibrar o carro, durante a dificuldade de uma curva, com o contrapeso de meu corpo. Por um instante senti o veículo perder a traseira, e com um impacto repentino, dar-me a impressão de que havia freado. Não sei se o mundo girou ao meu redor, ou se eu rodava o mundo, e tudo estava parado. Isso representava apenas o peso das minhas lembranças, das minhas punições, que não só aumentaram o peso da balança, e desceram seu prato abaixo da pena, como também me colocaram a mercê de Anúbis. Ancoraram minha razão em falsos julgamentos que não foram controlados pelos mortos. Deram-me o valor de flor comum, mesmo sabendo que eu representava uma lótus. Em que teia de resistência me perdi? Coloquei meus pés na água fria, e só então percebi que estava sozinho na banheira. Os rostos, as formas e a alegria de um novo momento, fazem esquecer o compromisso feito com o universo, num tom nitidamente estrelar de movimento. Agora não queria apenas um carro para controlar, mas uma nave que me levasse aonde nenhum homem chegou. Chegar à fronteira que separa o certo, da imaginação. Descobrir o que é apenas sonho, e o que é pura perdição. Quero submeter a rapidez da luz. Quero que meu nome seja escrito por uma constelação. Quero ficar eternizado no brilho das paredes, e ser lembrado como um diamante de tons colossais. Quero ficar preso na lembrança de um beijo, quero sobreviver à selva de animais. O mundo pode deixar uma parte de si ruir, eu quero, contudo, preencher a humanidade com um pouco de mim. Não quero mais me entregar aos pedaços. Não quero mais verbalizar o que eu acho. Quero esquecer o que disse, e quero me lembrar do que faço. Quero me entregar por inteiro, quero ser um ano completo, um calendário que não comece apenas em janeiro. Nessa hora de escuridão taciturna, fecho a conta da estrada, e saio escondido sob uma noite, encontrando apenas uma parada. Adorno você noite de céus perfeitos. Presenteio você com o brado salvo de um eleito. Faço dos meus olhos a razão do teu anseio, e perco minha boca numa tocha embebida em óleo, fogo aceso que incendeio. Desprezo seu vento, alvorada da paixão, entrego-me ao seu dia cheio, com toda perdição, entendendo que não se tem vida vazia, quem se encorajou a lhe dar a mão. Não esconde nos bolsos areia fria, quem amou por um verão. Não sei se consegui abrir as pernas dessa tábua de passar, não sei se guardei a sereia em meu corpo, ou se a devolvi ao mar. Quanto mais louco me encontro, mais quero me encontrar, e solto, vivo como louco, querendo sanidade buscar.
Entendi que quanto mais eu fujo, maiores são as chances de verdadeiramente me perder, cair numa cama com amnésia, e de fome, frio e sono, padecer. Nada do que ouvi serviu para eleger prioridades, nada do que senti serviu para acreditar que o mundo era uma verdade. Nada do que li me libertou completamente dessas vaidades, e vejo hoje que menti para mim, ao tentar evitar saudades. Mentiras jogadas nas lâminas, cortadas pelo peso da infâmia, espalhadas pela força do vento estúpido. Corpo esmagado pelas rodas, que foram lançadas pela ignorância dos escolhidos. Rodas de incultos, chatos pervertidos, disfarçados de intelectuais fortes e destemidos. Cuspes concentrados em gotículas que pareciam verdadeiros cristais, guardando as lágrimas vertidas, mediante o encontro de meus olhos com os punhais.

terça-feira, 10 de março de 2009

BOMBAS E ALUCINAÇÕES

Minhas costas estão apoiadas na cama que agora suporta meu lamento. As mãos descansam num colo vazio. O colchão, antes feito de espuma, aponta os pregos que não só perfuraram meu corpo, mas também cravaram seu ferro na minha angústia vívida e precoce, que foi forjada no calor de meu peito que um dia bateu acelerado, mas que hoje descansa em paz, inerte, aproveitando o frio de quem sabe, a sua última glaciação. Em dias que o sol é apenas um anônimo no céu, penso que poderia ser interessante estar junto à mesa dos banquetes podres.Revelando para os outros os seu próprio espelho, e entendendo que não se constrói labirintos em lotes baldios. Queria me sentar, e como queria! Não apenas para me deliciar com os manjares da volúpia e sedução, mas para entender até que ponto pode o ser humano ser testemunha de si mesmo. Em horas que parecem estacionadas num beco sem saída, velejo pelos rios, que são verdadeiras portas de entrada. Fechei a janela que me permitia contemplar o imaginário pueril. Verifiquei que as mesmas portas, abertas por outros, foram fechadas muito antes de verem meus pés pisando em seu batente. Batente sórdido de pessoas humilhadas pela própria insanidade corrente. Luxúria débil, óleo santo de uma volúpia latente. A tragédia se fez mesa posta, a doença se lançou como cadeira, e na plataforma hedonista que se apresentava, com facas do desespero pudemos espetar nossos sonhos mais secretos. A baba de um bezerro órfão caiu em meu copo, e transformou o cálice sagrado, num copo tempestuoso, marcado por furacões misteriosos. Onde encontrarei encosto nesse quarto vazio? Em quais móveis repousarei o corpo cansado, que abandonado pelo silêncio, busca ser ouvido além? As almas brincaram comigo essa noite, os anjos voaram pelo quarto, e não permitiram que eu me concentrasse na obra diabólica de pensar. A razão se jogou do penhasco, e o som que ouvi, foi apenas um tosco barulho de corpo caindo. Nem as aves quiseram recuperá-la, nem as hienas se importaram com ela. Como é que pode, algo, que por tanto tempo foi buscado, se deixar cair no infinito das lembranças mortas, e o que é pior, desprezadas. Desprezei o tempo, desprezei as feras, desprezei as lâminas que apararam minha barba, e acabaram com a minha cara de velho socrático, conferindo-me um ar de Gitão. Menino louco e desvairado, pelas suas penas condenado, pelos seus prazeres julgado, e ao recluso suor de sua testa, restrito. Não comi o que me deram, não bebi o que me ofereceram. Fiz jejum para poder pensar. Fiz-me mudo estando louco para falar. Não posso morder as presas, meus dentes caíram, e banguela prossigo assoprando vento na cara das pessoas.