sábado, 14 de março de 2009

UM ABISMO NOITE ADENTRO II - Quero sentir o gosto de tudo que perdi

Enquanto minhas mãos seguravam o volante e meus ouvidos absorviam as cores de uma capa sem disco, dei graças pela tecnologia, e por termos abandonado o LP. Deixei a cabeça viajar tão rápido quanto o sangue que jorra das veias abertas, quando são postas numa piscina quente. Percebi que eu, um viajante errante, um guia perdido, me encontrava lambuzado e escondido nos preconceitos que sempre combati. Perseguido pelos inimigos imaginários que retornaram do Hades, e trocaram Perséfone pelo meu sossego. Não tiveram apenas um reino, não buscaram apenas um emprego. Quebravam-se assim os quadros da parede. O sorriso discreto da Gioconda misteriosa desfraldava uma gargalhada naquela cena ruidosa. Era pego de assalto, pela surpreendente encenação de opiniões que há pouco desprezei. Estava surpreendido pela realidade posta numa obra prima, que eu nunca desejei. Descobri que desse livro feito às pressas, eu não era o autor, e nas pinceladas temperadas pelo óleo de linhaça deixei impresso o sonho de um pintor. Não sei onde encontrei essa possibilidade suculenta para degustar. Não me recordo quando foi que me fiz cozinheiro e mestre do apetite, se fiz o almoço, ou apenas o jantar. Tento uma colaboração do meu cérebro e faço um esforço para reproduzir o momento exato do encontro. Se numa lata de lixo, ou numa maca de hospital, se na intenção de achar o bem, ou na minha solicitude com o mal. O certo, porém, é que senti pena, senti nojo, da comida que fiz. Queria vomitar meu espírito, minha razão, e meu juízo de valor. Usar uma bacia descartável, que pudesse ser aproveitado depois por um boticário, sob a garantia de eu comprar um frasco desse remédio contra a dor. Um remédio vindo das minhas entranhas, minha mais pura essência de idéias estranhas. Talvez comendo um pouco de mim mesmo, posto sobre a mesa que montei eu possa reciclar o que não entendo, e descobrir a minha lei. Como seria bom, penso às vezes, entregar as rédeas da minha vida, para um cocheiro qualquer. Não precisa ser inteligente nem amável, nem homem, nem deus. Um herói talvez. Ele abriria as portas da minha carruagem, que já foi guiada pelos lampiões acesos nas noites invernais, e montaria no corcel (condutor dos meus projetos), alado creio eu, para desbravar todas as encostas íngremes que cortam a planície das minhas objeções. Enterrar as veias dilaceradas, e acertar as cordas desafinadas. Poderíamos quem sabe, até incendiar as árvores da floresta petrificada, e eliminar o peso que sufocou a pureza de minhas intenções.

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