sábado, 20 de dezembro de 2008

OUTRA NOITE NA TABERNA, O ENCONTRO COM A MORTE

Eu vi a morte, e ela sorriu para mim. Mostrou-me seus dentes afiados, e seu rosto repleto de pele frouxa, que pendia dos ossos, quase em decomposição. Seu corpo, tinha um porte forte e, pasmem, vívido. Resplandecia a garbosidade de um guerreiro que venceu muitas batalhas. Mãos fortes, dedos longos. As veias que a irrigavam, pareciam artérias, dado a grossura de seus calibres. Muito sangue passava por ali. Interessante perceber como a morte parecia mais viva do que a própria vida, que diga-se de passagem, eu nunca conheci.
Eu vi a morte, e a chamei para se sentar. Pedi uma bebida forte, já que essa senhora não é daquelas que se entrega por qualquer trago. Não me recordo agora, mas acho que foi whiskey, um bourbon talvez. Enquanto ela se acomodava no assento, observei as pessoas ao meu redor. Todas despreocupadas, vivendo a aparência oportuna que o momento proporciona. A senhora da foice tomou o lugar reservado para si. Olhou-me, e conseguiu através de meus olhos ver minha nuca, entrou em minha alma, e me senti fulminado pelo fogo de sua retina. Estava pasmo, desequilibrado, desorientado. Nunca ninguém me olhara assim, nem mesmo na mais intensa hora de amor. Como eu tinha perguntas para fazer! Pensava que tão forte era o instante, tão precioso o momento, que talvez não saísse vivo desse encontro, mas sem trocadilhos com a ouvinte. Esse pensamento vinha da intensidade que a conversa apresentaria. Senti antes de qualquer coisa um aperto profundo, uma angústia dilacerante. Meu coração era comprimido contra ele próprio. Era como se uma mão o apertasse cada vez mais forte, cada vez mais fundo. Queria correr, mas meu corpo me acompanharia, queria explodir, mas ainda sobrariam pedaços sórdidos de lembranças que lutaram para não serem esquecidas, queria gritar, mas mesmo assim, minha voz só expressaria a dimensão da minha ansiedade. Controlei então o ritmo das batidas, controlei o fluxo dos pensamentos, foi assim que pude dormir um pouco, antes de me lembrar do encontro, e partir correndo, para chegar na hora marcada. E agora, cá estou eu, sentado atônito, diante dessa figura milenar que continua sorrindo. Confesso que fiquei com medo, por vários momentos eu temi pela minha existência. Agora que alguns minutos passaram, percebo apenas um olhar de curiosidade que ronda nossa mesa. Tenho tantas coisas para dizer, tantas perguntas para fazer, que já estou me sentindo como uma criança que se perdeu dos pais, no meio de uma loja de brinquedos. Não sei por onde começar. O pior é saber, que se fosse ela a responsável pelas perguntas, eu já estaria repleto de pontos de interrogação. Mas dentro da minha quietude paira a grande e assombrosa expectativa do momento porvir. É interessante deixar o tempo passar, fico olhando sua cara impaciente, pensando, quem sabe talvez, numa coisa melhor para fazer. Suas roupas, se é que posso chamar aqueles panos sujos de roupas, trazem as marcas de uns bons anos sem descanso. Acho que ultimamente ela tem trabalhado demais. Temos dado motivos de sobra para isso. Estamos sendo parceiros nessa luta desumana, ou humana demais. Finalmente uma pergunta surge, mas justamente sobre algo, que eu acredito ela não entenda: A vida. E foi justamente nesse ponto que me enganei. Quando lhe perguntei sobre a dimensão da vida, ela me respondeu de uma forma pausada, e quase auto-explicativa, que a vida dimensiona-se pela vontade de viver. Pelas horas que passamos contemplando essa virtude de excelência quase divina. Muitos ousam tentar entender o sentido da vida, e assim gastam os anos que lhes são confiados na vã filosofia que busca explicar o inexplicável. A dimensão da vida está presa em cada passo dado rumo ao infinito, em cada gosto sentido, em cada nova informação aprendida. A dimensão da vida está em poder olhar para o lado e perceber que cultivamos amizades, cultivamos amor, carinho, e conquistamos um mundo ao nosso redor. Essa dimensão não se finda com a morte, mas ganha uma nova essência. A essência que não precisa da matéria para sobreviver. Que agüenta firme a marca da ausência, e eterniza-se nas palavras de quem insiste em relembrar. Nossa boca é a maior mantenedora desse espírito. Cada vez que mencionamos um ente que se foi, um amigo que nos deixou, uma pessoa especial, estamos revivendo esse ser, nem que seja de maneira puramente sentimental ou intelectual, mas ele continua em nosso meio, e contra isso não há morte que possa vencer.
Fiquei surpreso, calado e envolto na mesma sintonia de misericórdia. A morte então foi tomada por uma expressão de desânimo, e suspirou fundo, como se quisesse dizer algo mais. Eu não estava errado, e ela prosseguiu dizendo, que o medo que as pessoas sentem de morrer, não fundamenta-se no medo da morte propriamente, mas no apego que se tem ao mundo material, no sentimento de que algo ficou para trás e no desejo de levar tudo e todos que gostamos para o mesmo caminho. O homem não a teme, o homem não a vê como fazendeira que ceifa vidas, mas como um momento que estraga os prazeres. Se nos comportássemos como uma vela, e deixássemos queimar lentamente nosso fluído vital, não teríamos medo da chama se apagar. Mas como usamos o presente para anular o passado ou preparar o futuro, acabamos nos esquecendo das mais belas impressões que a vida nos dá. E isso nos causa medo. Isso nos faz evitar o destino certo de todos: fechar os olhos para a vida, quando a vida não nos quiser mais. Pois sim, isso é verdade. Não é a morte que nos busca, mas a vida que nos entrega, quando percebe que não sabemos mais o que fazer com esse dom que recebemos diariamente. Apesar dessa dádiva representar muito, alguns não pensam assim, e resolvem entregar seus destinos a práticas que não levarão a lugar nenhum, senão, ao caminho da própria tumba. Ao caminho das trombetas mudas, dos anjos sem asas, das casas sem teto, do céu sem estrelas, da escuridão sem luz. A vida despede-se do choroso ausente. A vida dá tchau. E contribuímos levantando a mão, quando deveríamos lutar para preservá-la, lutar para mantê-la firme ao nosso lado. Mesmo a vida sendo um vácuo entre dois infinitos, ela ainda assim impressiona. Causa fascínio aos olhos aflitos, esquente o coração gelado, torna-se doce o fel derramado. Mesmo assim queremos desprezá-la, submeter nossa razão às paixões insanas, perder o nosso tempo com brigas que nem sabemos como começou, e enquanto isso nos envolve, a areia da ampulheta está caindo, e completando nossos dias.
Já era tarde, e a morte levantou-se, como se querendo finalizar a nossa conversa. Logo agora, que as perguntas começaram a brotar. Justo no momento em que meu coração foi solto, e a mão invisível que o apertava deu adeus! Que injusto, a noite apenas havia começado. Mas no exato instante em que o medo foi embora, minha amiga morte também deixou o lugar. Demorou até eu perceber que continuava vivo, e que mais uma vez havia cansado a morte. Continuo sendo, e ela não é, mas estou certo de que quando ela for, eu não serei mais.

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