
Normalmente as fases de sofrimento pelas quais passam um artista, são também as fases de suas grandes obras. Persistência da Memória (1931) é uma das obras mais conhecidas de Dalí e foi concebida justamente numa dessas fases. Dalí havia sido expulso de casa pelo pai, e encontrava-se em dor, angústia e desespero. Abre então sua alma para jogar toda essa ansiedade materializada numa espécie de blasfêmia intelectual. O enquadramento de fundo da obra, são os rochedos do cabo de Creus, local exato onde os Pirineus vem morrer no Mediterrâneo. O jogo de sombras e cores proporciona ao espectador uma visão nova a cada olhar, num cenário de descaso e solidão. Essa representação encontra-se, como que num encontro arranjado, com a alma conflitante de cada um de nós. Essa alma presa por grades tão simplórias, e prontas para se desmancharem. Essa alma que nós tentamos abafar, esconder, encolher, reduzir ao nosso ímpeto animal e inconsciente. Assim se apresenta a obra de Dalí, num emaranhado de sensações difíceis de identificar, mas próximas o bastante para que possamos prontamente senti-las.
As partes moles dos relógios, são resultado de uma noite de muita enxaqueca, num jantar onde os canhões foram alinhados para receber muita bebida.
O tratamento em relação ao tempo (na retratação dos relógios) é outro aspecto curioso. Um tempo descartável, subjetivo, individual. Um tempo que não está preso ao próprio tempo. Que é livre, solitário e independente. Solto em meio a uma paisagem bucólica, esquecida por alguém. O relógio não surgiu no quadro de Dalí de uma forma misteriosa. Alguém certamente o deixou ali, e se o deixou era porque queria esquecer. O relógio nos faz lembrar da dor, das horas que perdemos, dos dias que passamos, da vida que não volta mais. Abandonar o relógio significa abandonar todas as coisas que tentam nos manter nesse mundo real. Deveríamos fazer mais visitas à Alice, deveríamos visitar mais o país das maravilhas, onde a noção do tempo também se perde num vácuo de imagens infinitas.
Dalí pintou seu último quadro em 1983, e faleceu alguns anos depois. Isso significa que ninguém, absolutamente ninguém jamais poderá buscar os relógios que foram deixados nessa paisagem. Eles estão para sempre esquecidos, sepultados e marcam o tempo de ninguém, num lugar onde ninguém se importa com o tempo que passou.
Um comentário:
Professor, sou aluna de pedagogia da Faculdade de Educação da UFMG. E pesquisando por Salvador Dali achei seu blog. Muito boa sua interpretação da obra.
Fiquei muito feliz de encontrar...
Kelly Freitas
FAE/UFMG
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