sábado, 31 de janeiro de 2009

A PEDRA QUE LANCEI

Você partiu e eu não pude dizer tchau. Caminhou distante em meio às notas que começavam a dar o tom do carnaval. Fantasias preparadas para a noite de Veneza, fantasias retiradas para mostrar o sentido da certeza. Rios secos, mantendo em seu leito o barqueiro fiel que continuava seu trabalho, mesmo sem ter onde navegar. A partida se deu como a última gota da chuva antes do sol, e eu vi o dia claro raiando, sem ter sentido a força da água que caiu. Meu corpo seco e iluminado reclama pelo frescor que a tarde poderia ter-lhe dado. Meus ouvidos sensíveis e leais agradecem a oportunidade concedida e o som escutado. Para você, posso dizer como foi bom cultivar o jardim. Jardim de pensamentos, jardim de sorrisos, jardim de olhares, jardim de boas e ingênuas intenções. Intenções essas que estavam ocultas sob a roupagem de uma menina como uma flor e dum menino com simples gestos de moleque, perdido no meio de palavras sem nenhuma pretensão aparente. Nesse jogo de sílabas e letras, podemos criar o conjunto de situações. Estas que vivemos, e as que imaginamos viver. E agora fiquei com a nítida impressão da partida. Melhor assim. Penso que foi melhor assim. A quem quero enganar quando digo que achei melhor? Melhor seria a certeza de sempre lhe encontrar, melhor seria a curiosidade de cada novo momento, melhor seria a capacidade legada ao jardineiro de regar suas plantas, colocando-as na terra, tirando-as do cimento. Sem maldade, sem medo de estragar a perfeição que se criou no mundo das idéias. As idéias não estão submetidas aos defeitos nem ao tempo. Transformam simples pretensiosos em candidatos eleitos, e tornam bonita a oportunidade que se criou. Por outro lado, talvez seja melhor ficar dentro da caverna e não conhecer a verdadeira origem das coisas. Talvez seja melhor a simples sombra da verdade. Agora restam fotos e recordações. Restam tintas e canetas guardadas como segredo na página escrita, trancafiada como revelação. Eu poderia ter sido letra impressa em teu corpo, marcado como uma cicatriz que se escolhe ter. Deixado como tatuagem, um sinal que sempre serviria para lembrar da sorte, que às vezes a vida escolhe nos dar. Os deuses as vezes brincam com seus filhos, os mortais, centro da diversão do universo. Eles, os deuses, gostam de nos confundir, embaralhar nossa cabeça e nos fazer indagar até o mais simples dos sinais. Criam as vontades, desenvolvem os desejos, escolhem as palavras, e sacam de nossos olhares a inquietação e o medo. Depois, nos deixam perdidos nesse labirinto incompreensível, levando embora a oportunidade tão aguardada, que poderia se dar numa festa, num encontro ou numa ocasião velada. Até hoje não entendi o que aconteceu. Prefiro assim, pois dentro de um universo de coisas possíveis, posso escolher entender aquelas que julgo convenientes, e que me farão sentir melhor. Criar as interpretações específicas, saudar tristonho a incapacidade que tenho de ir além. Foram boas aquelas palpitações juvenis. A pedra rola ribanceira abaixo, e no seu percurso ela não escolhe o caminho que percorre, apenas desce. Curiosa pelo alvo que vai alcançar. Quando alcança, o faz de forma inesperada, e deixa o rastro da trilha que ceifou. Não sabemos de onde ela veio, porque se soltou, apenas a vemos ali, pedra rolada, pedra parada, pedra solitária.

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